Martha Medeiros: O que os deuses nos deram - coluna revista o Globo deste domingo. Boa leitura!
A gente sabe que troca de ano é pura ilusão e que um dia sucede outro, simples assim. Mas é forte a sensação de que essa é a hora de zerar tudo e recomeçar a vida de outra forma. Por isso fazemos planos, estipulamos metas e alimentamos a expectativa de que nos tornaremos pessoas melhores daqui pra frente.
Eu, ao menos, suspendo a descrença e mergulho de cabeça nessa onda inaugural, abraço a ideia de renovação. Faço balanços, tento descobrir onde errei no passado e prometo a mim mesma que vou me corrigir, para isso contando com a ajuda preciosa de filósofos, budistas, aforistas e demais sábios de plantão. Leio tudo deles, anoto, sublinho, decoro. Vamos lá, agora vai.
Pois estava tomada por esse delírio quando me caiu no colo uma frase do poeta Fernando Pessoa: “Te tornarás só quem tu sempre foste. O que os deuses te dão, dão no começo”.
O gajo é um melancólico, mas sabe colocar as coisas em seus devidos lugares.
Toque aqui, poeta. De acordo. A gente até pode apertar nossos parafusos frouxos de tempos em tempos, mas mudar, virar outra pessoa por obra e graça da virada do calendário é acreditar demais em conspirações cósmicas. O que os deuses me deram, deram na infância. E o que os deuses não me deram, simplesmente não deram.
Eu queria ser menos encasquetada. Eu queria ser menos eloquente. Eu queria ser mais audaciosa. Os deuses não me deram. Em compensação, me ofertaram coisas que nunca pedi, que nunca me atrevi nem a sonhar, e o quinhão foi de respeito. Vim ao mundo bem nutrida, bem amada e portando uma caixa de ferramentas de gente grande, o que me tornou uma expert em construções e reparos. Vou querer trocar essas peças originais por ferramentas desconhecidas? A essa altura?
Agora não dá, agora passou do prazo, agora é se virar com o que se tem. O que os deuses nos deram, deram no começo. Que cada um faça bom uso do que recebeu.
A você, os deuses deram o quê lá no início? Neuroses? Insegurança? Saúde frágil? Carência? Inteligência? Firmeza de caráter? Fraqueza moral? Força de vontade? Humor? Se em meio a esse pacote tão sortido de defeitos e qualidades estiver a tolerância, não há muito do que reclamar. Mãos à obra. O ano começou de pernas para o ar. Atentados em Paris, carnificinas na Nigéria, violência urbana no Brasil. Em todo lugar, a estupidez aflora nas mais diferentes proporções. Então, em meio a esse curto-circuito provocado pela coragem de uns e a covardia de outros, que a gente reforce nossa capacidade de convivência amistosa, de discernir as formas menos agressivas de lutar pelo que se acredita e de se emocionar diante da fragilidade humana. Supondo, com otimismo, que os deuses nos beneficiaram lá no início.
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